sem título

“…
…Faz um esforço para não pensar naquilo em que não consegue deixar de pensar. Está a pensar naquilo em que não consegue deixar de pensar. O seu pensamento é um texto com uma sintaxe adversa, em que as palavras estão fora do lugar, paralisando-se umas às outras, atropelando-se, devorando-se, tornando-se a mesma num eco inextinguível. …
… Há meses que está cansado. Agora, que tem todo o tempo para descansar, não consegue descansar. Deita-se cansado, levanta-se cansado. Faz perguntas ao corpo e o corpo não responde. Dá-lhe ordens e ele não obedece. Foge-lhe para escapar à sua tristeza, ao seu tédio, ao seu torpor: ausenta-se, nega-se a ser corpo, revolta-se. Está cansado. …
…Imagina um corpo que seja o destino do seu corpo. A mão desce do peito para a barriga, da barriga para o sexo. Pára aí. Mexe aí. Pressão da pele contra pele, como se a mão estivesse a mexer num sexo que não o dele. Ou como se o sexo fosse dele e a mão fosse de outra pessoa. Agita a mão: lentamente; depois rapidamente. Não consegue. Falha. … Desiste. Tem vergonha. Afasta-se do seu corpo, retribuindo-lhe a distância a que ele o pôs: repudia-o, falha-o. …
…Dói-lhe tudo, está exausto, cansado do cansaço. Não quer abrir os olhos. Pensa no ontem, pensa no amanhã, mas não consegue sair do hoje. … Sente que os olhos humedecem. Tem vergonha da sua inutilidade, da sua humilhação, da sua impotência. Procura no sono um esconderijo. Não consegue dormir. Dói-lhe tudo, de uma dor inteira e dividida, interior e exterior, côncava e convexa. Abre os olhos. Olha o tecto.
Num salto, levanta-se da cama. O quarto está frio e ele arrepia-se. … Deixou de fazer a barba. …Desvia o olhar de si, da sua desistência, do seu fracasso. Dá meia-volta, vira as costas ao espelho. Aponta o sexo cansado à sanita e mija, mija muito. Ouve o som do mijo. Ouve-o –ele é o único som propício nestes dias.”

José Manuel dos Santos in Expresso, 14 Fev2009

sometimes life is tough; i believe the trick is to be tougher that it; There´s no other option.